ÓRBITA EM FRAGMENTOS
Rogério Spanzelli
Identificar uma trajetória na produção artística de Mario Massena, se constitui uma ambígua tarefa: a própria práxis do artista se articula em orientar fragmentações ora de formas conexas, nas acumulações de elementos similares que se organizam no vislumbre de um entendimento de totalidade, ora de maneiras aparentemente desconexas, em que a leitura dos resultados só é possível na percepção de um sentido de complementariedade. Nessa perspectiva em que o fragmento pode ser um símbolo, com sua narrativa imanente, mas as vezes um signo, com sua qualidade originária dentro de uma serialidade, o artista nunca opta por uma abordagem puramente construtiva, elaborada como uma síntese dentro de uma organização formal totalmente inventada, em que o resultado da obra confunde-se com sua própria estrutura; mas antes e sempre, dentro de um ideário de process-art ,não só pelo emprego de materiais precários, naturais ou industriais, mas também pela aproximação com o paradigma indiciário¹, estabelecendo com seu processo artístico um caráter de criação mental.
Um itinerário pode ser identificado a partir da década de 80,nas primeiras experiências pictóricas, claramente influenciadas pela Transvanguarda. Realiza uma pintura sem direções pré-constituídas, ambientada com ecletismos, numa combinação de drama e informalidades,escorregando para abstrações ou revalorizando o desenho. Suportes precários e improvisados muitas vezes são determinantes no resultado das obras desse período.
Sua transferência para Ouro Preto em inicios da década de 90, onde residirá até a virada do século, e onde fará sua formação em Conservação e Restauração de Bens Culturais, junto a Fundação de Arte de Ouro Preto, estabelece uma inevitável aproximação com o universo da estética barroca, que será visível em suas consequentes produções. Essa aproximação, entretanto, não se fará dentro dos discursos que pontuam essa estética, nem no sentido de presentificar esse passado e seu imaginário. Tampouco se apropriará de suas narrativas e as deslocará de seu tempo/mentalidade, reconfigurando-as em nossa temporalidade. É nos resíduos, nos fragmentos dos incontáveis elementos artísticos da cidade histórica, que Massena, com olhar prospectivo, promoverá sua leitura: da produção de uma época e seus desgastes, das descaracterizações e mutilações que a passagem do tempo e o uso, acarretam às coisas. Documenta amostras e registra em centenas de anotações e esboços², aquilo que sua sensibilidade considera válido como objeto de estudo, sem preocupações em estabelecer significados e correspondências, sem compromisso em buscar sentidos e ordenações , mas, pela relação que esses indícios do passado inferem em nosso tempo. Estabelece assim, um dialogo entre matéria e memória, das coisas produzidas por nós mas que nos causam em determinados momentos estranhamento, desses micro-significados que nada significam, e que só sobrevivem, no âmbito das poéticas existenciais. Seguindo nessa vertente de uma "arte povera" , intervindo ou não nesses véstigios encontrados, buscando uma lógica que só pode ser alcançada por meio de um procedimento artístico, a matéria permanece aquilo que é, mas ultrapassa seu valor mínimo alcançando um valor máximo,” é portanto antítese da matéria sem deixar de ser matéria”³. Muitas vezes carboniza materiais, estabelecendo na sublimação pelo fogo, uma fenomenologia dos vestígios e resíduos, revelando a condição de um existir efêmero, condição inerente a vida. Outras vezes se apropria de materiais funéreos, recolhidos em cemitérios, espaço simbólico da morte, com sentido de dar-lhes vida, ainda que breve.
Caminhando na contra-mão de uma sociedade, onde o fazer é tecnológico e industrial, e a lógica , a funcionalidade e o descarte, Massena articula em seu fazer artesanal, coisas duradouras ou não, que só fazem sentido como simbologias de uma existencialidade. Dessa maneira , não evita os símbolos que podem emergir e superar a própria matéria. Seu processo de construção tambem em constante processo, estabelece narrativas sem temporalidade, ou de temporalidades difusas. Conjugando materiais cuja disponibilidade muitas vezes é ilimitada, estabelece com suas metamorfoses possíveis, uma dinâmica particular, uma identificação de continuidade essencial, um fragmento de sua realidade refletindo nossa existência fragmentária.
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¹ Segundo Ginzburg “a partir de dados aparentemente irrelevantes descrever uma realidade complexa.”
²Esses esboços e anotações foram reunidos pelo artista em 2010 na obra Fragmento Contínuo.
³Argan, Arte Moderna, p.547